James Douglas Morrison tinha tudo para se tornar um filho da pátria dos Estados Unidos da América: filho de militares, de classe média alta, criado na Califórnia. Mas, em algum ponto da década de 50, ele começou a ler Rimbaud, Nietzche e Edgar Allan Poe. Daí em diante fez um curso de cinema ao lado de Francis Ford Coppola, passou a renegar seus pais e ter uma vida boêmia, passando os dias a devorar textos filosóficos e se embebedar. Não tinha nenhum talento musical, mas se demonstrou então um grande poeta. Um poeta subversivo, do calibre de seus ídolos. Quando recitou Moonlight Drive, um de seus poemas, para o tecladista Ray Manzarek, este adorou sua lírica e resolveu montar uma banda. Chamou Robby Krieger e John Densmore, seus colegas de meditação indiana, para que fossem respectivamente guitarrista e bateirista. Todos eles eram principalmente músicos de jazz e blues, e então houve a junção dos estilos, que ainda se misturou com o rock para produzir o som característico dos Doors. O próprio nome da banda, para jogar por terra qualquer idéia de que Jim Morrison era só um drogado prepotente (como ele demonstrava ser em suas performances no palco), vem do livro de Aldous Huxley “As Portas da Percepção” (The Doors of Perception), que narra uma viagem lisérgica e tem como título uma referência a um aforismo de William Blake, “quando as portas da percepção estiverem abertas, as coisas aparecerão como são, infinitas.” Começaram tocando em bares. Na escalada à fama em Los Angeles, alcançaram facilmente o posto de banda popular e foram contratados pela Elektra Records para criar o álbum que marcaria a ferro o nome dos Doors não apenas no rock, mas na música e até mesmo na literatura contemporânea.
Morrison era um poeta do caos, da loucura e da dor. Cheio de fúria animalesca mista ao seu apelo sexual, adicionando aí algumas substâncias ilícitas como LSD, maconha, cocaína e heroína, sua voz se tornava uma hipnose e suas canções, poemas da insanidade. Ele não apenas cantava suas canções, ele as interpretava oralmente e punha suas emoções no palco. Em uma época marcada pela filosofia jovem, ele servia como porta-voz de toda uma geração, sem o menor medo de dizer o que quisesse, fosse isso uma crítica política metafórica ou a descrição de uma relação sexual. Interessante dizer que Jim Morrison não aparentava se interessar em criar música: ele apenas a usava para mostrar seus poemas ao mundo, teoria reforçada por sua falta de habilidade como interpretador musical. O primeiro disco de sua banda nos apresenta todos esses fatores: a poesia furiosa, o blues, os poemas épicos. É uma abertura para tudo que os Doors fariam depois.
“Break on Through (To the Other Side)” é classificada por John Densmore como uma “bossa nova norte-americana.” Mas, diga-se de passagem, que bossa nova mais violenta! A bateria começa por trás, com a guitarra e o teclado entrando com força alguns segundos antes do vocal berrar a canção que abre o disco com a mensagem que deve ser usada para entendê-lo: “atravesse para o outro lado.” A letra não é ainda a viagem morrisoniana que se tornaria padrão, mas tem o refrão animador e o peso do rock ao fundo. Já tem os toques de metáfora que se tornariam tão característicos no som dos Doors. Um dos clássicos gerais da banda.
O teclado espacial de Ray Manzarek abre “Soul Kitchen” e a guitarra entra ao fundo com a batida de blues. A voz se torna mais calma no começo, falando de uma noite num bar. É impossível o refrão não soar alcoólatra : “deixe-me dormir a noite toda na cozinha da sua alma/aquecer minha mente em seu suave fogão/ponha-me para fora e eu vou ficar vagando, baby/cambaleando nos bosques de neon.” Conforme o fim da música se aproxima, tudo se torna mais rápido e a batida volta ao início... belo exemplo do blues elétrico único dos Doors.
“Antes de você pular em inconsciência, eu gostaria de lhe dar outro beijo.” É assim que começa “The Crystal Ship”, agora a viagem lisérgica e lírica entrando em conjunto com um vocal sereno e hipnótico, com a bateria e o teclado tornando-se cada vez mais lentos enquanto os versos avançam. O solo de teclado de Ray toma vias mais românticas no meio e a bateria se torna quase um acompanhamento de jazz. A letra é uma grande metafora que às vezes deixa a lírica de lado para indagar o ouvinte, “oh, me diga onde sua liberdade jaz/as ruas são campos que nunca morrem.” Uma das melhores canções do disco, o que, acreditem, não é pouco.
“Twentieth Century Fox” descompromissa o álbum todo. Afinal, é só uma faixa sobre uma garota. Mas na escrita de Morrison, tudo se torna arte: o teclado soa ao fundo, com a guitarra de Krieger tendo seu primeiro grande destaque, em meio a vozes de típicas canções californianas. É uma faixa de descanso que não abandona nem envergonha o que foi feito antes.
O clima vaudeville se instala perfeitamente à “Alabama Song (Whiskey Bar)”: no início o vocal cantando a velha canção alemã, no primeiro cover do disco, se mistura com o teclado que é tocado como nunca fora antes, e como nunca mais seria. É uma música predominantemente boêmia, com versos que parecem ter saído de bocas bêbadas em frente a bares como “na lua de Alabama/agora precisamos dizer adeus” misto com versos embriagados como “me mostre o caminho para o próximo bar de uísque/oh, não pergunte o porquê.” Animada, divertida, fixante e perfeita para se ouvir ao lado de uma garrafa de vodka.
E é com um solo de teclado que começa a música mais famosa dos Doors: “Light My Fire.” O início lembra um som de fliperama e súbito se mistura com a voz lamuriosa de Morrison. A letra de Robby Krieger narra uma namoro em seu auge (é, acho que podemos dizer assim). Inclusive, quando essa música foi apresentada no Ed Sullivan Show, o pessoal da censura pediu que o verso “girl we couldn‘t get much higher” fosse trocado para “girl we couldn‘t get much better.” Eles tocaram a versão do álbum, sem nenhuma alteração; como era um programa ao vivo, não havia nada a ser feito além de os censores continuarem assistindo. No meio da música Manzarek, Krieger e Densmore tocam por quatro minutos e meio sem nenhuma voz: é uma longa e viajante canção, na melhor percussão de John, com a melodia mais original e fixante possível. A performance dançante do disco. Imperdível.
As cordas soam e “Back Door Man” começa. É um blues forte, vindo do mestre Willie Dixon e mixo ao teclado e à bateria tradicional. A voz de Morrison é berrada nessa faixa, em que transforma versos em gritos raivosos. Engraçado que ele faz isso da melhor forma possível, acreditem. Aqui eles adiantam o que fariam depois, em discos como Morrison Hotel e L. A. Woman, que têm o blues único dos Doors.
“I Looked At You” é a balada do disco. Com um toque que chega a lembrar o trabalho dos Beatles de começo de carreira, ela é carregada pelo teclado ininterrupto que dá o tom dos Doors misto à guitarra flamenca e à bateria, que tem certo destaque nessa canção. O vocal segue uma linha violenta que não termina, mas descansa no refrão sem fim: “porque é tarde demais, tarde demais, tarde demais, tarde demais.” Ah, se todas as bandas baladeiras fossem assim...
O teclado é doentio e fraco, a guitarra quase inaudível, a bateria chora muito ao fim. Um som triste e parado é a voz, que canta “End of the Night.” A letra segue o verso-título: “pegue a estrada para o fim da noite”, num tom de cantiga de ninar. O refrão, emocionante e chorado, se torna o ânimo para a barulheira que vem a seguir.
“Take It As It Comes” segue a linha de Break on Through: início rápido, refrão que segue o título e instrumentos tocados com força. Essa, porém, é mais rock ‘n’ roll que aquela. A bateria serve de compasso atrás, enquanto o teclado não recebe tanta atenção quanto a guitarra. É a última das hipnoses do disco, que compensa a falta das teclas com o curto solo de Ray no meio. No fim, tudo se torna alto, e o teclado finalmente entra como antes: louco, psicótico, doentio, genial. Corta as lágrimas da faixa anterior com sua raiva explosiva.
Cordas indianas se confundem com ruídos melancólicos e compassos leves. É “The End” que começa. Os instrumentos entram conforme a música avança, até começar a voz, a louca voz que lhe seguirá durante os onze minutos seguintes. É Jim Morrison e o possível maior poema da história do rock. Nada soa alto, nada é exposto: é poesia cantada. O vocal é inconfundível. As cordas têm maior destaque aqui, como só poderia ser; são elas que tomam as rédeas que acompanham o ouvinte sem deixá-lo entediado. A letra é o carro-chefe. Longas estrofes que misturam surrealismo com caos, uma longa e apocalíptica história sobre o fim. O início é histórico: “Este é o fim, brilhante amigo. Este é o fim, meu único amigo: o fim. De todos nossos planos elaborados, o fim. De tudo que se ergue, o fim. Sem surpresa ou segurança, o fim. Nunca mais olharei em seus olhos.” Mais alguns minutos de loucura e o teclado recebe destaque ao fundo, levando música à palavra. Foi censurada em dezenas de países, principalmente pela parte em que ela se mescla à Édipo Rei e Morrison canta sua frase mais conhecida: “Pai, eu quero te matar. Mãe, quero te comer.” Os instrumentos perdem o controle e a voz ao fim, “venha, venha, vamos foder, vamos, venha, foder, foder”, do modo mais subversivo possível, com a anarquia caótica se transformando em arte, até tudo se acabar com socos na bateria e a voz, “matar, matar, matar, matar, matar.” É mister Mojo Risin‘ destruindo a sociedade em versos, até o toque do começo voltar e ele terminar com outra estrofe, “este é o fim.” A mais longa canção dos Doors fecha o álbum com clima épico. Elvis Presley pode dizer de peito erguido: seu som, o rock ‘n’ roll, tinha se tornado arte, finalmente.
The Doors foi uma banda que mudou toda a história. Enquanto o resto do mundo se voltava à paz e amor dos hippies (exceto, é claro, os governantes estadunidenses), eles seguiam o lado da loucura e do caos, misturado à psicodelia e uma música que é na verdade a mistura de todos os gostos dos membros, desde o jazz até o samba. A Elektra criou a capa perfeita, cores escuras e rostos tristes, com maior destaque a Morrison, claro: era ele o rosto da banda, sem sombra de dúvida. Tudo que veio antes tinha que ser reavaliado. A sociedade, a literatura, o rock, tudo tinha sido alterado pelos Doors. Interessante que eles não só chegaram ao topo, como ainda se manteram lá; os álbuns seguintes fariam ainda mais sucesso, mas isso é assunto para outra hora, porque está tarde demais, tarde demais, tarde demais, tarde demais...